segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Hoje à tarde me deu vontade de escrever.


Estava vindo pra casa, num ônibus lotado. Trazia em meu colo meia dúzia de livros que irão me entreter ainda à noite. Vinha cansado e não pensava em nada específico.
De repente, me acordou uma vontade imensa de escrever. Trazer as palavras que adormeciam já há algum tempo e despejá-las numa folha em branco. Sede e fome servem como boas metáforas para minha ânsia de dialogar com o lápis. Resolvi escrever.
O passo dado, porém, não representa a direção escolhida. Me chamei inspiração. Busquei em algo, em alguma lembrança talvez, motivo e alimento pra minha redação. Desisti de procurar. O barulho das pessoas, as risadas, a força empregada pelo veículo na subida da ladeira dispersava completamente meu raciocínio. Fui olhar a paisagem na janela suja do ônibus. Era linda. Era estranhamente linda, pois passava por ali todas as tardes e nunca me dera o prazer de admirar a minha volta. Por favor, não penses que estou retratando aqui nenhuma vista do mar ou uma serra rasgada de cachoeira ou qualquer dessas cenas que a natureza se encarrega de mistificar com sua vaidade. Não, estou falando do caminho da minha casa. Cheia de ruas sujas e gente pobre. Mas e a lindeza? Está justamente aí. Minhas ruas hoje não eram as mesmas. Traziam um encanto novo. Novos caminhos se abriram em minha passagem. Novas gentes. Vi três guris correndo atrás de uma bola num campinho de areia sujo de grama. Vi entre eles também um sorriso que me alegrou. Estavam descalços. Podiam ficar doente com a friagem – não me lembro de ter dito, mas está pra chover e no momento esfriava. Vi de relance, o ônibus fez a curva. Continuei admirando as imagens que se mostravam tão perfeitas e tão poéticas pela pura singularidade de existir. Uma dona de casa estendendo a roupa no varal, uma moto entrando em uma rua e, após descobrir que estava enganada, fazendo a volta de maneira infratora. Me lembro ter visto um senhorzinho já careca com pequenas manchas grisalhas arriscar a serenidade da velhice em cima de uma bicicleta. E de ter visto também um cachorro doente. Como nunca pude ter visto estas coisas antes?
Em determinado ângulo, o sol, que estava timidamente abraçado por nuvens deixou vazar aos meus olhos uma claridade vitalícia. Me incendiou sua presença. E me mostrou o mundo, esse grande mistério revelado que por tanto tempo relutei de ver. Voltei minha atenção pra dentro do ônibus.
Nunca julgues alguém que por cansaço ou por ocupações ou por preferência mesmo prefere viver dentro de si. As pessoas se entregam facilmente às outras. Nunca fui um parceiro de convivência ou conveniência. Antes fosse. Mas meus hábitos pequenos e fechados me trancaram na redoma de minha face. E agora dentro desse universo micro e apertado pude notar como as pessoas fazem parte uma das outras. Misturam-se para formar a essência do prazer coletivo. Da pluralidade geral. E se tornam um.
Mas ainda há algo de errado. Meu descuido foi a pressa da observação. Não há uma unidade homogênea, não. Há algo mais. Algo mais invisível nessa situação que separa as pessoas. Elas não se conhecem, não são um. Nem querem ser. São vários uns espalhados com seus problemas e suas perturbações. Estão todos presos em suas vidas assim como um condenado à masmorra. Assim como o mar está preso em si mesmo. Assim como eu estava, como eu estou. Somos todos eu. São todos como mim. Ansiamos pela liberdade de forma completa mas nos prendemos em grades de prepotência e preconceito. Estamos muito preocupados com nossa face que nos esquecemos do que ela representa. Maquiamo-nos. Para que assim os outros possam nos ver, nos notar, nos avaliar e nos esclarecer.  Nos medimos, nos trancamos e morremos sós.
Voltei minha concentração para a janela. A escuridão, que já despedia o sol, contra-atacada pela claridade da lâmpada fluorescente do interior do ônibus refletia-me no vidro. Esquivei-me, preferi não me encarar. E como não podia ver a imagem, fui ver o instrumento. Procurei as sujeiras do vidro da janela para me enganar. Mas eles foram além e conseguiram arrastar minhas últimas palavras em um apólogo que escutara na infância e me reapareceu assim. Minha avó que me contou. Falava, em termos resumidos para não alongar ainda mais minha narrativa, de uma senhora que vivia reclamando o encardido dos lençóis estendidos de uma moça recém-casada que tornara sua vizinha. A senhora, porém, ao ver os lençóis estendidos pela janela de sua casa, não notava que a sujeira amarela que via nos panos não era culpa da má-lavagem da jovem, mas da falta de limpeza do vidro da janela de sua casa. Gostava muito das histórias de minha avó, embora a infância não nos permita entender as ironias escondidas por trás dos atos e das pessoas. Ainda bem. Hoje tudo faz sentido.
O ônibus parou no meu ponto. Desci e fui pra casa apressado antes que chovesse, escondido debaixo de mim.

Rivaldo Júnior

3 comentários:

  1. Rivaldo amei o texto, de alguma forma ele fala de mim, a forma com você escreveu, me fez sentir como se estivesse ali no lugar do personagem.
    Engraçado como certos pensamentos vem em lugares inusitados neh... Minha mente sempre começa a viajar assim quando estou andando de bicicleta pela cidade.
    Conhecia essa historia ai, da mulher que falava do lençol sujo, minha mãe sempre me conta isso.

    Esse texto vai para os meus favoritos. ^^

    Bjoss

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  2. Sem palavras pra descrever as múltiplas sensações que tive ao ler este texto..Já pensou em escrever Romances/Ficção? É Fantástico!!! Me envolvi nele como se estivesse eu no ônibus *-* Parabéns Rivaldoo!

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  3. Concordo com o Neto... deveria mesmo escrever Romances/ficção... *-*

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