segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

O torcedor (Carlos Drummond de Andrade)


No jogo de decisão do campeonato, Eváglio torceu pelo Atlético Mineiro, não porque fosse atleticano ou mineiro, mas porque receava o carnaval nas ruas se o Flamengo vencesse. Visitava um amigo em bairro distante, nenhum dos dois tem carro, e ele previa que a volta seria problema.
O Flamengo triunfou, e Eváglio deixou de ser atleticano para detestar todos os clubes de futebol, que perturbam a vida urbana com suas vitórias. Saindo em busca de táxi inexistente, acabou se metendo num ônibus em que não cabia mais ninguém, e havia duas bandeiras rubro-negras para cada passageiro. E não eram bandeiras pequenas nem torcedores exaustos: estes pareciam terem guardado a capacidade de grito para depois da vitória.
Eváglio sentiu-se dentro do Maracanã, até mesmo dentro da bola chutada por 44 pés. A bola era ele, embora ninguém reparasse naquela esfera humana que ansiava por tornar a ser gente a caminho de casa.
Lembrando-se de que torcera pelo vencido, teve medo, para não dizer terror. Se lessem em seu íntimo o segredo, estava perdido. Mas todos cantavam, sambavam com alegria tão pura que ele próprio começou a sentir um pouco de flamengo dentro de si. Era o canto? Eram braços e pernas falando além da boca? A emanação de entusiasmo o contagiava e transformava. Marcou com a cabeça o acompanhamento da música. Abriu os lábios, simulando cantar. Cantou. Ao dar fé de si, disputava à morena frenética a posse de uma bandeira. Queria enrolar-se no pano para exteriorizar o ser partidário que pulava em suas entranhas. A moça, em vez de ceder o troféu, abraçou-se com Eváglio e beijou-o na boca. Estava batizado, crismado e ungido: uma vez Flamengo, sempre Flamengo.
O pessoal desceu na Gávea, empurrando Eváglio para descer também e continuar a festa, mas Eváglio mora em Ipanema, e já com o pé no estribo se lembrou. Loucura continuar flamengo a noite inteira à base de chope, caipirinha, batucada e o mais. Segurou firme na porta, gritou: "Eu volto, gente! Vou só trocar de roupa" e, não se sabe como, chegou intacto ao lar, já sem compromisso clubista.


quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Ponteio (Edu Lobo)



Era um, era dois, era cem.
Era o mundo chegando e ninguém que soubesse que eu sou violeiro,
Que me desse o amor ou dinheiro...
Era um, era dois, era cem.
Vieram pra me perguntar:
"Ô voce, de onde vai, de onde vem?
Diga logo o que tem pra contar"

Parado no meio do mundo,
Senti chegar meu momento:
Olhei pro mundo e nem via,
Nem sombra, nem sol, nem vento...

Quem me dera agora eu tivesse a viola pra cantar...

Era um dia, era claro, quase meio.
Era um canto falado, sem ponteio.
Violência, viola, violeiro,
Era morte redor, mundo inteiro...
Era um dia, era claro, quase meio.
Tinha um que jurou me quebrar...
Mas não lembro de dor nem receio: só sabia das ondas do mar.

Jogaram a viola no mundo,
Mas fui lá no fundo buscar!
Se eu tomo a viola: Ponteio!
Meu canto não posso parar, não.

Quem me dera agora eu tivesse a viola pra cantar, ponteio!

Era um, era dois, era cem.
Era um dia, era claro, quase meio.
Encerrar meu cantar já convém
Prometendo um novo ponteio.
Certo dia que sei por inteiro.
Eu espero não vá demorar, esse dia estou certo que vem.
Digo logo o que vim pra buscar...


Correndo no meio do mundo,
Não deixo a viola de lado.
Vou ver o tempo mudado
E um novo lugar pra cantar...

Quem me dera agora eu tivesse a viola pra cantar...

Ponteio!

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

parto pós-maturo



no dia em que me disseram
que poema não precisa de forma,
que poema não precisa de rima,
deus sorriu
carlos, gauchismo.

desde então
não mais vi, não já ajo
só viajo.

ainda bem.

Rivaldo Júnior

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Crime Passional (Filipe Catto)


Tem samba no meu quarto a noite inteira,
Especialmente quando tu te vais...
Tem dança quando diz que não me chegas
Que é para distrair o que me faz sofrer aqui demais.

Na madrugada tem perfume e vela
Pra atrair alguém que vem e traz...
Alguma coisa que em ti me falta
Uma atenção singela pra deixar a noite em paz.

Se for pra me ferir com teu silêncio,
Respondo teu vazio com a paixão,
Pra outros corpos que me satisfazem
Já que essa rua te acalanta muito mais que o meu colchão...

Enquanto te convence para os outros,
Enquanto te bajulam pelo bar,
Não vê, nem por milagre, que tua casa
Pega fogo, espalha, luxuriosa, regozija...

Até que um belo dia me culpaste!
Disseste que assim não pode mais.
Eu ri e disse: "vai, pode cantar vitória agora"
Eu fiz mesmo! E faria, é, de novo, se tivesse... 

mas...

Três tiros irromperam a noite surda
Pr´um corpo de calor que se extinguiu
Me deu três beijos úmidos de lágrima
Selou meus olhos como um arrepio

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

Galope na beira do mar (Manoel Xudú)















O mar 
se orgulha por ser vigoroso
Forte e gigantesco que nada lhe imita
Se ergue, se abaixa, se move se agita
Parece um dragão feroz e raivoso
É verde, azulado, sereno, espumoso
Se espalha na terra, quer subir pra o ar
Se sacode todo querendo voar
Retumba, ribomba, peneira e balança
Não sangra, não seca, não para e nem cansa
São esses os fenômenos da beira do mar.

O próprio coqueiro se sente orgulhoso
Porque nasce e cresce na beira da praia
No tronco a areia da cor de cambraia
Seu caule enrugado, nervudo e fibroso
Se o vento não sopra é silencioso
Nem sequer a fronde se ver balançar
Porém se o vento com força soprar
A fronde estremece perde toda calma
As folhas se agitam, tremem e batem palma
Pedindo silêncio na beira do mar

Não há tempestades e nem furacões
Chuvadas de pedras num bosque esquisito
Quedas coriscos ou aerólito
Tiros de granadas de obuses canhões
Juntando os ribombos de muitos trovões
Que tem pipocado na massa do ar
Cascata rugindo serra a desabar
Nuvens mareantes, tremores de terra
Estrondo de bombas, rumores de guerra
Que imite a zoada das águas do mar. 


domingo, 8 de janeiro de 2012

Bicho de Sete Cabeças (Geraldo Azevedo)


Não dá pé,

        não tem pé nem cabeça...
Não tem ninguém que mereça,
                        Não tem coração que esqueça
Não tem jeito mesmo!
                                        Não tem dó no peito
              Não tem nem talvez ter feito o que você me fez
Desapareça!

    Cresça e desapareça!

Não tem dó no peito,
                Não tem jeito,
                       Não tem coração que esqueça!
Não tem ninguém que mereça,
                                         Não tem pé não tem cabeça
             Não dá pé não é direito,
Não foi nada,                        eu não fiz nada disso
                            E você fez um bicho de sete cabeças,

 Bicho de sete cabeças...

segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

já está tarde pra se falar dessas coisas




sou do tamanho do quadrado elevado ao meu medo.
não caibo em palavras tolas
não me caibo em mais segredos.

faço-me de preces vagas,
tua voz não mais me sente.
sinto que nunca faria as coisas que faço
e faço.

de repente um sorriso falso
te leva e me arranca de mim.
só me resta o nada.
mas nada mais me acalenta agora.

Rivaldo Júnior