quarta-feira, 29 de junho de 2011

Roda Viva (Chico Buarque)

Tem dias que a gente se sente
Como quem partiu ou morreu
A gente estancou de repente
Ou foi o mundo então que cresceu...

A gente quer ter voz ativa
No nosso destino mandar
Mas eis que chega a roda viva
E carrega o destino prá lá ...

A gente vai contra a corrente
Até não poder resistir
Na volta do barco é que sente
O quanto deixou de cumprir...

Faz tempo que a gente cultiva
A mais linda roseira que há
Mas eis que chega a roda viva
E carrega a roseira prá lá...
 
A roda da saia mulata
Não quer mais rodar não senhor
Não posso fazer serenata
A roda de samba acabou...

A gente toma a iniciativa
Viola na rua a cantar
Mas eis que chega a roda viva
E carrega a viola prá lá...

O samba, a viola, a roseira
Que um dia a fogueira queimou
Foi tudo ilusão passageira
Que a brisa primeira levou...

No peito a saudade cativa
Faz força pro tempo parar
Mas eis que chega a roda viva
E carrega a saudade prá lá ...

Roda mundo, roda gigante
Roda moinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração...

domingo, 26 de junho de 2011

Aviso prévio



Imaginei que voltarias... 
Senti teu calor quando passava.
Senti teu cheiro enquanto corria.
Ouvi tua prece no instante em que eu não mais a queria.

Pus-me a correr.
Desesperado fugi portas e janelas.
Pulei sonhos e acordei pesadelos.
Tampei meus ouvidos, olhos e bocas.
Gritei teu nome com súplicas de distância.

Afasta-te, agora.
Não te quero, agora.
Não te preciso, agora.
Não te deixo fazer novamente o que já fizeste.

Ah! Abominável criatura.
Ser inconsciente do ser consciente.
Porta da perdição
E leito do pecado.
Quando tu vieres refazer minha sepultura...
Desta vez já estou preparado.

Cerquei meu cérebro com arame farpado.
Cavei túneis de fugas secretas.
Desenhei muros e cercas elétricas.
Costurei a minha boca com fios de nylon.
Somei o universo que nos separa.
E tantos outros pus, obstáculos em nosso caminho.

Armei meus soldados interiores,
meus valetes e meus cavalos
com balas de festim.

Dividi meu coração em oitocentos mil pedaços
e espalhei-os por todos os cantos do mundo.
Para que nunca mais
nunca
Você possa rejuntá-los
E fazer o que fizeste de novo.
Outra vez.
Rivaldo Júnior
 

sábado, 25 de junho de 2011

Podres Poderes (Caetano Veloso)



Enquanto os homens exercem
Seus podres poderes
Motos e fuscas avançam
Os sinais vermelhos
E perdem os verdes
Somos uns boçais...

Queria querer gritar
Setecentas mil vezes
Como são lindos
Como são lindos os burgueses
E os japoneses
Mas tudo é muito mais...

Será que nunca faremos
Senão confirmar
A incompetência
Da América católica
Que sempre precisará
De ridículos tiranos
Será, será, que será?
Que será, que será?
Será que esta
Minha estúpida retórica
Terá que soar
Terá que se ouvir
Por mais zil anos...

Enquanto os homens exercem
Seus podres poderes
Índios e padres e bichas
Negros e mulheres
E adolescentes
Fazem o carnaval...

Queria querer cantar
Afinado com eles
Silenciar em respeito
Ao seu transe num êxtase
Ser indecente
Mas tudo é muito mau...

Ou então cada paisano
E cada capataz
Com sua burrice fará
Jorrar sangue demais
Nos pantanais, nas cidades
Caatingas e nos gerais
Será que apenas
Os hermetismos pascoais
E os tons, os mil tons
Seus sons e seus dons geniais
Nos salvam, nos salvarão
Dessas trevas e nada mais...

Enquanto os homens exercem
Seus podres poderes
Morrer e matar de fome
De raiva e de sede
São tantas vezes
Gestos naturais...

Eu quero aproximar
O meu cantar vagabundo
Daqueles que velam
Pela alegria do mundo
Indo e mais fundo
Tins e bens e tais...

sexta-feira, 24 de junho de 2011

Noite de São João (Alberto Caeiro)



Noite de S. João para além do muro do meu quintal.
Do lado de cá, eu sem noite de S. João.
Porque há S. João onde o festejam.
Para mim há uma sombra de luz de fogueiras na noite,
Um ruído de gargalhadas, os baques dos saltos.

segunda-feira, 20 de junho de 2011

Everythings gonna be alright (Bob Marley)


"Don't worry about a thing,
'Cause every little thing gonna be all right.
Singin': "Don't worry about a thing,
'Cause every little thing gonna be all right!"

Rise up this mornin',
Smiled with the risin' sun,
Three little birds
Pitch by my doorstep
Singin' sweet songs
Of melodies pure and true,
Sayin', ("This is my message to you-ou-ou:")

sábado, 18 de junho de 2011

Os insetos interiores (O Teatro Mágico)

Notas de um observador:
 
Existem milhões de insetos almáticos. 
Alguns rastejam, outros poucos correm.
A maioria prefere não se mexer.
Grandes e pequenos.
Redondos e triangulares,
de qualquer forma são todos quadrados.
Ovários, oriundos de variadas raízes radicais.
Ramificações da célula rainha.
Desprovidos de asas,
não voam nem nadam.
Possuem vida, mas não sabem.
Duvidam do corpo,
queimam seus filmes e suas floras.
Para eles, tudo é capaz de ser impossível.
Alimentam-se de nós, nossa paz e ciência.
Regurgitam assuntos e sintomas.
Avoam e bebericam sobre as fezes.
Descansam sobre a carniça,
repousam-se no lodo,
lactobacilos vomitados sonhando espermatozóides
 
que não são.
Assim são os insetos interiores.

A futilidade encarrega-se de maestra-los.
São inóspitos, nocivos, poluentes.
Abusam da própria miséria intelectual,
das mazelas vizinhas, do câncer e da raiva alheia.
O veneno se refugia no espelho do armário.
Antes do sono, o beijo de boa noite.
Antes da insônia, a benção.

Arriscam a partilha do tecido que nunca se dissipa.
A família.
São soníferos, chagas sem curas.
Não reproduzem, são inférteis, infiéis, in(f)vertebrados.
Arrancam as cabeças de suas fêmeas,
Cortam os troncos,
Urinam nos rios e nas somas dos desagravos, greves e desapegos.
Esquecem-se de si.
Pontuam-se
 
A cria que se crie, a dona que se dane.
Os insetos interiores proliferam-se assim:
Na morte e na merda.

Seus sintomas?
Um calor gélido e ansiado na boca do estômago.
Uma sensação de: o que é mesmo que se passa?
Um certo estado de humilhação conformada o que parece bem vindo e quisto.
É mais fácil aturar a tristeza generalizada
Que romper com as correntes de preguiça e mal dizer.
Silenciam-se no holocausto da subserviência
O organismo não se anima mais.
E assim, animais ou menos assim,
Descompromissados com o próprio rumo.
Desprovidos de caráter e coragem,
Desatentos ao próprio tesouro...caem.
Desacordam todos os dias,
não mensuram suas perdas e imposturas.
Não almejam, não alma, já não mais amor.
Assim são os insetos interiores.

 


sexta-feira, 17 de junho de 2011

A toada da porteira

















A porteira vindo range,
A porteira indo range,
A porteira vindo range,
A porteira indo range,
A porteira vai...

Vai ao encontro do som perdido no passado
Água da bica na jarra de barro.
O carro de boi que leva a cantiga,
Procissão de Ramos que traz a prece,
Logo anoitece...

E as estrelas, violeiras do silêncio,
Misturam o repente no coco de roda
Na dança, na ginga, no estalo, no som...
No labor intenso das casas de farinha
Pai Tomás, Comadre Fulozinha,
E os fantasmas tortos da velha usina de algodão.
E o batuque do trovão,
Que abre abril
Transpassa por maio
E ecoa em São João...
Em xote e xaxado
E o velho Gonzaga...

Ah! Boadeiro,
Vai pra junto do teu bem, homem!
Que o gado já está bem guardado
E a porteira...
Essa já não range mais.
Rivaldo Júnior

segunda-feira, 13 de junho de 2011

Chão de Giz (Zé Ramalho)

Eu desço dessa solidão
Espalho coisas sobre
Um Chão de Giz
Há meros devaneios tolos
A me torturar
Fotografias recortadas
Em jornais de folhas
Amiúde!
Eu vou te jogar
Num pano de guardar confetes
Eu vou te jogar
Num pano de guardar confetes...


Disparo balas de canhão
É inútil, pois existe
Um grão-vizir
Há tantas violetas velhas
Sem um colibri
Queria usar quem sabe
Uma camisa de força
Ou de vênus
Mas não vou gozar de nós
Apenas um cigarro
Nem vou lhe beijar
Gastando assim o meu batom...


Agora pego
Um caminhão na lona
Vou a nocaute outra vez
Prá sempre fui acorrentado
No seu calcanhar
Meus vinte anos de "boy"
That's over, baby!
Freud explica...


Não vou me sujar
Fumando apenas um cigarro
Nem vou lhe beijar
Gastando assim o meu batom
Quanto ao pano dos confetes
Já passou meu carnaval
E isso explica porque o sexo
É assunto popular...


No mais estou indo embora!
No mais estou indo embora!
No mais estou indo embora!
No mais!...

domingo, 5 de junho de 2011

Restos de insônia

Começo essa narrativa deitado em minha cama, olhando o teto branco. Já deve ter passado das duas da madrugada, e eu continuo aqui, olhando as manchas de infiltração na laje do meu quarto. Braços cruzados sobre meu peito. O barulho intermitente do ventilador tentando livrar meu corpo dos ataques dos pernilongos. Um caminhão, ou talvez um ônibus, desce a minha rua. Ouço gritos e um barulho forte. Viro-me de lado, procuro cochilar, mas o sono perde-se na escuridão. Me levanto. Vou a cozinha beber um copo d'água.

Tudo bem que o que eu disse não cabia nem no lugar nem no momento, mas ficar com raiva de mim só porque falei a verdade... aí já era hipocrisia. Até seus parentes mais distantes sabiam, contrariando toda a reclusão de seu relacionamento, que seu casamento não ia tão bem. Certa vez, conversando com Dona Ilda, uma de suas tias lá de Minas que viera a São Paulo para, além de conhecer seus sobrinhos-netos, realizar a tal necessitada operação de catarata; a boa senhora me perguntou qual era o problema do Pedro. O problema do Pedro? O problema do Pedro era seu casamento. Não aguentava mais a mulher e para safar-se da obrigação de ser pai e marido, a enganava. Claro que não frustrei a inocência da idosa com essa resposta, que por sinal era a melhor e a mais correta. Desviei a pergunta. Pus a culpa nos negócios, na empresa, no trânsito "endoidecedor" - como ela mesma dizia - e ela aceitou, ou pelo menos fingiu acreditar. Mas era óbvio o seu desprezo pela família. Já fazia semanas que não mais se olhavam. Meses que não os chamavam carinhosamente, o que era marca registrada do seu relacionamento. Agora, apenas um ácido nome próprio revelava a obrigação da contínua comunicação entre os dois.

Uma sirene passa rapidamente pela minha rua. Olhei para o pequeno basculante na parede do meu quarto, pelo qual eu, esporadicamente, fico observando a lua. Voltei a fitar o teto. Meus olhos não apresentavam nenhum sinal de sono. Mas eu sabia que teria um dia corrido e procurei fechar os olhos.

Estava bonita. Tristemente bonita. Trazia seus cabelos loiros presos. Seus olhos pareciam procurar um resto de vida naquela situação. Estavam perdidos, não olhavam para nada embora permanecessem todo o tempo voltados para o caixão. Porém estavam secos. Não haviam derramado nenhuma lágrima. Uma prima sua ficou tomando conta das crianças, que eram as coisas mais importantes de sua vida. Duas meninas, a mais velha deve ter uns quatro ou cinco anos e a mais nova tem pouco menos de um, ainda nem sequer aprendera a falar papai. Perdiam o pai de forma trágica. Sempre fui amigo do Pedro. Conheci-o na faculdade e logo que nos formamos começamos a trabalhar juntos. Era ótimo nos negócios, no entanto seus vícios de álcool e jogo levaram grande parte de seu tempo e dinheiro. Mas vivia bem. Conhecera a Lívia há pouco mais de cinco anos. Eram feitos um para o outro. Logo veio a primeira filha. E com ela, toda a rotina de casados. Mas o amor que os unia era mais forte. Conseguiu emprego em uma empresa maior, que lhe pagava quase o triplo do que recebia no antigo emprego, onde trabalhávamos juntos. Eu, bem, continuei ganhando pouco, porém com destino que cumpriria, daria minha vida para não ocupar sua vaga. Mas nem por isso deixamos de ser amigos. Até que um ano atrás começou a frequentar casas de apostas. Eu não tinha condições de acompanhá-lo. Ele mesmo vivia dizendo e redizendo que era jogo de gente grande, de muito dinheiro. Que faria eu lá? Que faria eu lá... Começou a se endividar, ao passo que se afundava na bebida. Tinha amantes e com elas passava os sábados e os domingos de trabalho extra. Esqueceu a mulher, que tudo fazia para não ver a situação que estavam. Começaram as brigas, discussões, os mal-tratos. Recordo de um domingo que fui visitá-los e não o encontrei. Ela estava chorando no tapete. A sala estava revirada. Cacos de vidro espalhados próximos da porta que estava escancarada. Fiz notar minha presença. Chamei e ela rapidamente se levantou. Enxugou os olhos e disse que tinha derrubado "sem-querer" a cristaleira que herdara da avó de Minas. Assumi que não acreditei e que sabia que as coisas não iam bem. Ela despencou sobre mim em lágrimas como se pela primeira vez tirasse um peso imenso de seu corpo frágil. Me abraçou e, chorando, começou a contar sobre o que havia acontecido. Disse que o Pedro ficara revoltado quando havia lhe dito que estava grávida e a ameaçou caso não tirasse a criança. Ela rispidamente disse que não faria e ele a atacou. Chorando ela olhou pra mim, perguntando o que havia acontecido com seu marido. Não pude responder. Não deu tempo. Ela me abraçou novamente e eu a abriguei em meus braços. Ficamos assim por intermináveis minutos.

Bocejo largamente. Espero que seja finalmente o sono chegando. Pelo basculante, o já citado, percebo que a luz do poste que fica em frente a minha casa se apagou. Seria falta de energia? O ventilador me responde que não e eu não discuto com ele. Procuro o celular... na mesa. Vou lá buscar.

Na quarta recebi uma ligação, era o Pedro pedindo para eu dizer a Lívia que não se preocupasse pois não voltaria pra casa naquela noite. Não voltou. Não voltou mais. Anteontem, a mulher me liga desesperada procurando o marido. Me disse que ele não voltara e não atendia o telefone. Começaram as buscas. As esperanças morriam com o passar das horas. Um carro foi encontrado carbonizado próximo ao Morumbi. Restos de um corpo foram enviados para os exames. Era o Pedro. Não consigo citar a agonia e o desespero da família. Daquela mulher, daquelas crianças. O enterro foi apressado e rápido devido a situação do corpo. Poucas pessoas. Seus pais não chegaram a tempo do Espírito Santo para acompanhar o velório do filho único. Vida, terra, flores, morte. Voltei para casa. Mas não antes de falar com a viúva.

"Ele não mais te amava. Perdeu a vida sem dar conta da mulher que havia perdido." Essas palavras ecoam agora pelo meu quarto escuro. Quem as escuta? Ninguém além de mim. Mas elas romperam, com certeza, as paredes de meu quarto e foram a outra casa provocar a mesma insônia em alguém que já as tinham ouvido muito antes de serem ditas.  

Rivaldo Júnior