domingo, 5 de junho de 2011

Restos de insônia

Começo essa narrativa deitado em minha cama, olhando o teto branco. Já deve ter passado das duas da madrugada, e eu continuo aqui, olhando as manchas de infiltração na laje do meu quarto. Braços cruzados sobre meu peito. O barulho intermitente do ventilador tentando livrar meu corpo dos ataques dos pernilongos. Um caminhão, ou talvez um ônibus, desce a minha rua. Ouço gritos e um barulho forte. Viro-me de lado, procuro cochilar, mas o sono perde-se na escuridão. Me levanto. Vou a cozinha beber um copo d'água.

Tudo bem que o que eu disse não cabia nem no lugar nem no momento, mas ficar com raiva de mim só porque falei a verdade... aí já era hipocrisia. Até seus parentes mais distantes sabiam, contrariando toda a reclusão de seu relacionamento, que seu casamento não ia tão bem. Certa vez, conversando com Dona Ilda, uma de suas tias lá de Minas que viera a São Paulo para, além de conhecer seus sobrinhos-netos, realizar a tal necessitada operação de catarata; a boa senhora me perguntou qual era o problema do Pedro. O problema do Pedro? O problema do Pedro era seu casamento. Não aguentava mais a mulher e para safar-se da obrigação de ser pai e marido, a enganava. Claro que não frustrei a inocência da idosa com essa resposta, que por sinal era a melhor e a mais correta. Desviei a pergunta. Pus a culpa nos negócios, na empresa, no trânsito "endoidecedor" - como ela mesma dizia - e ela aceitou, ou pelo menos fingiu acreditar. Mas era óbvio o seu desprezo pela família. Já fazia semanas que não mais se olhavam. Meses que não os chamavam carinhosamente, o que era marca registrada do seu relacionamento. Agora, apenas um ácido nome próprio revelava a obrigação da contínua comunicação entre os dois.

Uma sirene passa rapidamente pela minha rua. Olhei para o pequeno basculante na parede do meu quarto, pelo qual eu, esporadicamente, fico observando a lua. Voltei a fitar o teto. Meus olhos não apresentavam nenhum sinal de sono. Mas eu sabia que teria um dia corrido e procurei fechar os olhos.

Estava bonita. Tristemente bonita. Trazia seus cabelos loiros presos. Seus olhos pareciam procurar um resto de vida naquela situação. Estavam perdidos, não olhavam para nada embora permanecessem todo o tempo voltados para o caixão. Porém estavam secos. Não haviam derramado nenhuma lágrima. Uma prima sua ficou tomando conta das crianças, que eram as coisas mais importantes de sua vida. Duas meninas, a mais velha deve ter uns quatro ou cinco anos e a mais nova tem pouco menos de um, ainda nem sequer aprendera a falar papai. Perdiam o pai de forma trágica. Sempre fui amigo do Pedro. Conheci-o na faculdade e logo que nos formamos começamos a trabalhar juntos. Era ótimo nos negócios, no entanto seus vícios de álcool e jogo levaram grande parte de seu tempo e dinheiro. Mas vivia bem. Conhecera a Lívia há pouco mais de cinco anos. Eram feitos um para o outro. Logo veio a primeira filha. E com ela, toda a rotina de casados. Mas o amor que os unia era mais forte. Conseguiu emprego em uma empresa maior, que lhe pagava quase o triplo do que recebia no antigo emprego, onde trabalhávamos juntos. Eu, bem, continuei ganhando pouco, porém com destino que cumpriria, daria minha vida para não ocupar sua vaga. Mas nem por isso deixamos de ser amigos. Até que um ano atrás começou a frequentar casas de apostas. Eu não tinha condições de acompanhá-lo. Ele mesmo vivia dizendo e redizendo que era jogo de gente grande, de muito dinheiro. Que faria eu lá? Que faria eu lá... Começou a se endividar, ao passo que se afundava na bebida. Tinha amantes e com elas passava os sábados e os domingos de trabalho extra. Esqueceu a mulher, que tudo fazia para não ver a situação que estavam. Começaram as brigas, discussões, os mal-tratos. Recordo de um domingo que fui visitá-los e não o encontrei. Ela estava chorando no tapete. A sala estava revirada. Cacos de vidro espalhados próximos da porta que estava escancarada. Fiz notar minha presença. Chamei e ela rapidamente se levantou. Enxugou os olhos e disse que tinha derrubado "sem-querer" a cristaleira que herdara da avó de Minas. Assumi que não acreditei e que sabia que as coisas não iam bem. Ela despencou sobre mim em lágrimas como se pela primeira vez tirasse um peso imenso de seu corpo frágil. Me abraçou e, chorando, começou a contar sobre o que havia acontecido. Disse que o Pedro ficara revoltado quando havia lhe dito que estava grávida e a ameaçou caso não tirasse a criança. Ela rispidamente disse que não faria e ele a atacou. Chorando ela olhou pra mim, perguntando o que havia acontecido com seu marido. Não pude responder. Não deu tempo. Ela me abraçou novamente e eu a abriguei em meus braços. Ficamos assim por intermináveis minutos.

Bocejo largamente. Espero que seja finalmente o sono chegando. Pelo basculante, o já citado, percebo que a luz do poste que fica em frente a minha casa se apagou. Seria falta de energia? O ventilador me responde que não e eu não discuto com ele. Procuro o celular... na mesa. Vou lá buscar.

Na quarta recebi uma ligação, era o Pedro pedindo para eu dizer a Lívia que não se preocupasse pois não voltaria pra casa naquela noite. Não voltou. Não voltou mais. Anteontem, a mulher me liga desesperada procurando o marido. Me disse que ele não voltara e não atendia o telefone. Começaram as buscas. As esperanças morriam com o passar das horas. Um carro foi encontrado carbonizado próximo ao Morumbi. Restos de um corpo foram enviados para os exames. Era o Pedro. Não consigo citar a agonia e o desespero da família. Daquela mulher, daquelas crianças. O enterro foi apressado e rápido devido a situação do corpo. Poucas pessoas. Seus pais não chegaram a tempo do Espírito Santo para acompanhar o velório do filho único. Vida, terra, flores, morte. Voltei para casa. Mas não antes de falar com a viúva.

"Ele não mais te amava. Perdeu a vida sem dar conta da mulher que havia perdido." Essas palavras ecoam agora pelo meu quarto escuro. Quem as escuta? Ninguém além de mim. Mas elas romperam, com certeza, as paredes de meu quarto e foram a outra casa provocar a mesma insônia em alguém que já as tinham ouvido muito antes de serem ditas.  

Rivaldo Júnior

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