Palavra não é coisa para se deixar no fundo da gaveta, mofando. Palavra, quando nasce, é para você cuidar, botar roupa nova, dar vitamina e sair para passear com ela, até ficar bobalegre. Toda palavra é uma criança: brota batata no céu da boca e se esparrama pelo chão das más línguas. Aí, vira palavrão. Como o primeiro verso que aprendemos na infância, a palavra dorme com a mão no coração. Chora de noite, nas repartições da consciência. Na falta desta, berra no sonho. E derrama lágrimas de conta-gotas na garrafa dos últimos pesadelos. Nesse caso a palavra pode virar rio, oceano, tempestade, maremoto. E inundar os mais bem guardados abismos. Por isso é preciso ter cuidados. Palavra, quando adoece, não tem remédios. Se perde o sono, o jeito é apelar para o Lexicotan (um palavrão antidistônico, filho da gíria e do jargão, primo do Bichionário, e irmão da Desgramática). O Lexicotan pode ser dissolvido no chá da mamadeira verbal. Assim a palavra ronca, ressona. E acorda falando.
Quando a palavra cresce, é preciso escolher os amigos dela. Aproximá-la de outras palavras que possam torná-la mais bonita. Toda palavra é adolescente. Confusa, medrosa, gorda, insegura, magrela, entediada, nariguda ou autoritária. Essa palavra, quase sempre, não sabe o que quer. Então, é necessário um diálogo, um papo firme, bem franco. Às vezes, um limite: castigo, puxão de orelhas, corte de mesada, para que ela possa florescer como as roseiras depois da poda. Aí, talvez, só pra contrariar, ela vai ler O Pequeno Príncipe. Em seguida, virar manequim, top-model, miss. Você vai ter que dar o braço a torcer, argumentando apenas que isso é brega, ultrapassado. Mas não haverá mais o que fazer. Outros ficarão de olho nela, admirando as medidas perfeitas, os efeitos especiais, as curvas... Essas curvas com as quais poderia ela, um dia, botar um rapaz a se perder: o rapaz e suas convicções mais profundas... E não adianta ter ciúmes de sua palavra. Ela já conheceu Freud, já se apaixonou por Lacan e já dormiu com Jung debaixo do travesseiro. Pior: já devorou todos os “paulocoelhos” dessa vida.
A palavra pode ser fatal. Quando vira mulherfeita, é outro perigo. Nessa fase, é preciso ter cuidado redobrado: a palavra madura é armadilha volátil, retrátil, e ao mesmo tempo substantiva. Nunca está só, porque agora, com vida própria, já escolheu seus advérbios-parceiros, seus jovens e adjetivos-amantes. E mais: os astutos e quase invisíveis pronomes. No encalço desses você terá que colocar detetives. Gente do naipe de Sherlock Holmes ou Hercule Poirot. A explicação é simples: os pronomes não deixam pistas. E são dificílimos de seguir, de segurar, ou de prender. E é preciso ter jogo de cintura, coragem, disposição e sangue frio para “abater” o pronome-passarinho que está importunando sua palavra. Há casos, na empreitada, em que se faz necessário contratar pistoleiros de aluguel. Desses que não erram a pontaria. E fazem o serviço limpo, sem alarde. Conheço um, por exemplo, que é especialista em dar cabo nos “pronomes impessoais do caso reto”. Adora eliminá-los em qualquer lugar, seja lá em Santana do Vão Vernáculo, ou em Vila Velha da Nova Ortografia. No fim da limpeza, sopra o cano do revólver e o enfia novamente no coldre. Depois, calmamente, acende um cigarro-de-palha, monta no cavalo-de-pau e some no poente. The End. E lá está o bicho-pronome no chão, estatelado, como um artigo definido.
Numa certa tarde de inverno, sua palavra cisma de ganhar o mundo. Vai embora. E se casa com um ruído pós-moderno. Mas, logo em seguida, eis a separação. Ela já quer o divórcio, exige pensão alimentícia, e você argumenta: “Deixa disso. Pensão alimentícia é coisa ultrapassada, machista. São os dois que cometem o erro, reconhecem o erro, e só um paga por ele”. Mas não adianta. Sua palavra volta para casa com um monte de palavrinhas-netinhas pra você criar. Algo assim como Catabulerindobível, aquela palavra que James Joyce inventou pra ficar se coçando na hora do banho!
Depois ela envelhece. Enrugada, gorda, decadente, murcha, esclerosada, tenta se manter de pé. Faz lipoaspiração aqui, coloca implante ali, plástica acolá. Se renova toda, inventa roteiros transatlânticos. E la nave va...
Quando retorna, você não mais a reconhece. Está recauchutada como um gato de dezessete vidas. Sua velha conhecida volta novamente criança, pra que você possa lhe ensinar o mito da Fênix.
Fênix? Zupt! Um pensamento mal enjambrado, e ela renasce das cinzas, plena, cheia de vida. (Renascer: algo que você não consegue durante a vida inteira, por covardia, ou por faltam de uma firula que os amigos chamam de “personalidade definida”). Mas ali está ela, à sua frente, o novo rabo da lagartixa. O tempo reciclado cheio de palavras. Por isso já decidi: “Na outra encadernação quero voltar como livro!”. E basta.
Tem gente que possui muitas palavras guardadas no armário-dicionário de suas vidas. Não sei o que é ter muitas dessas, graças a Deus. Só tenho uma que é fundamental: Mãe, que também é uma palavra que pode se chamar Eugênia. E também Sebastiana, Zindinha, Diva, Maria de Lourdes, Angelina ou outras Ângelas, e outras Marias. Ou mãe que também pode se chamar Graça, que é uma palavra que dorme comigo, que me acende o Sol, e vale por sete mil amores. Ou mãe que pode se chamar Larissa: uma palavra-filha que todo dia me acorda da Lua, me põe no mundo outra vez, e é sinônima de “alegria”: uma outra forma de dizer “felicidade”.
SETTE, Graça; PAULINO, Maria Ângela; STARLING, Rozario.
Transversais do mundo – Leituras de um tempo; Belo Horizonte: Lê, 1999.
Que pode uma criatura senão, senão entre criaturas, amar? amar e esquecer, amar e malamar, amar, desamar, amar? sempre, e até de olhos vidrados, amar?
Que pode, pergunto, o ser amoroso sozinho, em rotação universal, senão rodar também, e amar? amar o que o mar traz à praia, o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha, é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?
Amar solenemente as palmas do deserto, o que é entrega ou adoração expectante, e amar o inóspito, o áspero, um vaso sem flor, um chão de ferro, e o peito inerte, e a rua vista em sonho, e uma ave de rapina.
Este o nosso destino: amor sem conta, distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas, doação ilimitada a uma completa ingratidão, e na concha vazia do amor a procura medrosa, paciente, de mais e mais amor.
Amar a nossa falta mesma de amor, e na secura nossa amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita .
Por mais que eu insistisse, o sono não passava. A cortina escura deixava escorrer uns raios de sol que pareciam ser mandados diretos para mim. O relógio alertava-me da pressa em acordar. Teria um dia corrido. Levantei -me e fui ao banheiro, torneira aberta, lavei meu rosto mal-barbeado, olhei o espelho.
Nesse momento, uma nova feição de mim mesmo me foi apresentada. Um outro eu olhava-me espantado como se não reconhecesse o seu observador. Eu, não menos diferente, encarava-o, examinava-o, apreciava detalhadamente toda aquela imagem trivial e desconhecida. Era eu. Não, não era eu, era um outro eu. Talvez mais velho, mais acabado, mais longínquo. Porém a lógica do espelho refletia ao meu pensamento a certeza de ser eu, agora e sempre, e o vácuo e a tristeza do meu olhar.
E, mesmo sabendo que era a minha imagem, era como se eu fosse apresentado a um estranho, um parente esquecido, ou pelo espaço ou pelo tempo. Mas aos poucos me reconhecia por pequenos traços da minha fisionomia. Via, gradativamente, aquela criança do interior, minha mãe, meu pai. Meu pai. E sua cansada rotina de mestre da vida. Pouco conhecimento, mas muita sabedoria. Um homem sábio. E via neste homem sábio, o do espelho, a questão infinita do “ser ou não ser?”. No seu sorriso, porém, a sincera concepção de ser e saber que era o mesmo jovem revolucionário de desejos e sonhos incontáveis. Silêncio.
O barulho do relógio lembrou-me da hora e do longo dia que teria de cumprir. O espelho depois da distração, já não me fitava da mesma maneira, curioso, sombrio. Contudo, nem Sócrates e toda a sua filosofia puderam, como naquela manhã, me autorrevelar e mostrar a mim mesmo a verdadeira face de mim.
A desordem dos fatores
Dos meios comuns a qualquer homem
E o produto inalterado.
Miscigenado.
Metamorfoseado.
Desfigurado pelo tempo,
Pelos grãos que caem da ampulheta
Maldita transformação
E maldita atração dos opostos
Bendita transformação.
É ela que nos leva ao delta da vida:
A fase final menos a inicial.
Uma fase nova.
Trezentas e sessenta e cinco fases novas
Ou uma fase crescente
Ou minguante
Ou cheia,
Ou fase vazia.
Não me considero um mestre-cuca. Talvez possa até, metaforicamente, me considerar um segundo ajudante. Mas não há prática que não aprimore a teoria. Eis que nasceu. Não é belo, todavia não é feio. Nasceu. Ponho a mesa, os convidados vão chegando. A receita é simples mas, saborosa. As palavras são os meus ingredientes. Ingredientes melhores não poderia eu, escolher. Espero que gostes. Que sintas o aroma desses textos, que quebre as regras de etiqueta e lambuze-se em minhas palavras. Quem sabe até lamber os dedos? Mas aproveite. Este micro-blog deve ser considerado como um domingo de sol na casa da vovó. Aqueles pratos rurais que nos aparenta um delicioso aroma colorido. Aquele bolo de fubá que mas tem gosto de onomatopeia. Hummm! E a sopa verbo linguística de letrinhas para finalizar a noite de um frio estrelar. Verbofagia. Palavras de mesa. Aqui está um prato certo para dias em que se necessita quebrar todas as dietas de imaginação.