quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Como ontem.


Eu era apenas um estudante mal encaixado que preferia riscar as mesas da escola a conversar sobre as futilidades da vida. Engolia em mim mesmo as palavras por falta de ouvidos que me compreendessem. Desesperado em traduzir-me, encontrei a poesia, a mais pura forma de manifestação daquilo que se é. E assim, como um grito para mim mesmo, em dezenove de setembro de 2010, tive o meu primeiro filho: Palavras de Mesa. Um convite secreto para aqueles que quisessem saborear o que há de poesia pelo mundo. Fiz o meu próprio restaurante verbal, elaborei minhas próprias receitas linguísticas e tracei no cardápio as palavras que me cozinhavam. Como todo filho, os primeiros passos foram confusos e sem prumo. Mas aos poucos pude aperfeiçoar minha técnica e ampliar meu sensitivo às coisas que me rodeavam. Após exatos três anos, o Palavras de Mesa hoje está maduro e reflete também muito da minha 'amadurescência'. Se viver é deixar rastros, crescer é deixar mudas, e os textos que estão aqui refletem o meu crescimento. Agradeço muito ao blog pelos bons momentos que vivemos juntos, mesmo ele sendo fruto da minha inquietação, mas é como se houvesse uma parceria, um compromisso de reafirmar dia após dia aquilo que sou. Hoje, as receitas estão cada vez mais rareando, fruto da minha correria diária, do meu investimento de tempo no meu outro filho 'rivaldo junior da silva' e também devido o meu desleixo. Pode ser que não venha mais publicar algo aqui. Mas também pode ser que volte pra matar a saudade. Todavia, a mesa estará sempre posta, a casa estará sempre aberta, e a poesia será sempre o alimento que nos nutre.
Abraço e feliz aniversário, Palavras de Mesa.

quarta-feira, 11 de setembro de 2013

Elegia 1938 (Carlos Drummond de Andrade)



Trabalhas sem alegria para um mundo caduco, 
onde as formas e as ações não encerram nenhum exemplo.
Praticas laboriosamente os gestos universais,
sentes calor e frio, falta de dinheiro, fome e desejo sexual.

Heróis enchem os parques da cidade em que te arrastas,
e preconizam a virtude, a renúncia, o sangue-frio, a concepção.
À noite, se neblina, abrem guarda-chuvas de bronze
ou se recolhem aos volumes de sinistras bibliotecas.

Amas a noite pelo poder de aniquilamento que encerra
e sabes que, dormindo, os problemas te dispensam de morrer.
Mas o terrível despertar prova a existência da Grande Máquina
e te repõe, pequenino, em face de indecifráveis palmeiras.

Caminhas entre mortos e com eles conversas
sobre coisas do tempo futuro e negócios do espírito.
A literatura estragou tuas melhores horas de amor.
Ao telefone perdeste muito, muitíssimo tempo de semear.

Coração orgulhoso, tens pressa de confessar tua derrota
e adiar para outro século a felicidade coletiva.
Aceitas a chuva, a guerra, o desemprego e a injusta distribuição
porque não podes, sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan. 

segunda-feira, 2 de setembro de 2013

Construção (Chico Buarque)




Amou daquela vez como se fosse a última,
Beijou sua mulher como se fosse a última,
E cada filho seu como se fosse o único,
E atravessou a rua com seu passo tímido...
Subiu a construção como se fosse máquina,
Ergueu no patamar quatro paredes sólidas,
Tijolo com tijolo num desenho mágico,
Seus olhos embotados de cimento e lágrima...
Sentou pra descansar como se fosse sábado,
Comeu feijão com arroz como se fosse um príncipe,
Bebeu e soluçou como se fosse um náufrago,
Dançou e gargalhou como se ouvisse música...
E tropeçou no céu como se fosse um bêbado,
E flutuou no ar como se fosse um pássaro,
E se acabou no chão feito um pacote flácido,
Agonizou no meio do passeio público...

Morreu na contramão atrapalhando o tráfego.

Amou daquela vez como se fosse o último,
Beijou sua mulher como se fosse a única,
E cada filho seu como se fosse o pródigo,
E atravessou a rua com seu passo bêbado...
Subiu a construção como se fosse sólido,
Ergueu no patamar quatro paredes mágicas,
Tijolo com tijolo num desenho lógico,
Seus olhos embotados de cimento e tráfego...
Sentou pra descansar como se fosse um príncipe,
Comeu feijão com arroz como se fosse o máximo,
Bebeu e soluçou como se fosse máquina,
Dançou e gargalhou como se fosse o próximo...
E tropeçou no céu como se ouvisse música,
E flutuou no ar como se fosse sábado,
E se acabou no chão feito um pacote tímido,
Agonizou no meio do passeio náufrago...

Morreu na contramão atrapalhando o público.

Amou daquela vez como se fosse máquina,
Beijou sua mulher como se fosse lógico,
Ergueu no patamar quatro paredes flácidas,
Sentou pra descansar como se fosse um pássaro,
E flutuou no ar como se fosse um príncipe,
E se acabou no chão feito um pacote bêbado...

Morreu na contra-mão atrapalhando o sábado.