terça-feira, 29 de março de 2011

Mais que um Mero Poema (Rosa de Saron)


Parece estranho
Sinto o mundo girando ao contrário
Foi o amor que fugiu da sua casa
E tudo se perdeu no tempo

É triste e real
Eu vejo gente se enfrentando
Por um prato de comida
Água é saliva
Êxtase é alívio, traz o fim dos dias
E enquanto muitos dormem, outros se contorcem
É o frio que segue o rumo e com ele a sua sorte

Você não viu?
Quantas vezes já te alertaram
Que a Terra vai sair de cartaz
E com ela todos que atuaram?
E nada muda, é sempre tão igual
 
A vida segue a sina
Mães enterram filhos, filhos perdem amigos
Amigos matam primos
Jogam os corpos nas margens dos rios contaminados
Por gigantes barcos
Aquilo no retrato é sangue ou óleo negro?


É pão e circo, veja
A cada dose destilada, um acidente que alcooliza o ambiente
Estraga qualquer face limpa
De balada em balada vale tudo
 
E as meninas
Das barrigas tiram os filhos, calam seus meninos
Selam seus destinos
São apenas mais duas histórias destruídas
Há tantas cores vivas caçando outras peles
Movimentando a grife

A moda agora é o humilhado engraxando seu sapato
Em qualquer caso é apenas mais um chato

Aqui jaz um coração que bateu na sua porta às 7 da manhã
Querendo sua atenção, pedindo a esmola de um simples amanhã
Faça uma criança, plante uma semente
Escreva um livro e que ele ensine algo de bom
A vida é mais que um mero poema
Ela é real

E ainda que a velha mania de sair pela tangente
Saia pela culatra
O que se faz aqui, ainda se paga aqui
Deus deu mais que ar, coração e lar
Deu livre arbítrio
E o que você faz?
E o que você faz?

Aqui jaz um coração

quinta-feira, 24 de março de 2011

O fantástico mundo daqui


No meu fantástico mundo
Corre um rio desencantado
Corre um vento avexado
Correm estradas coloridas
Pros lados do pôr-do-sol...
Correm meninos danados
Correm pernas na poeira
Corre o mundo, a vida inteira
Corre a flor que não se cai
Corre a saudade de um pai
Que se falta conhecer
Mas se nunca há de morrer
Meu pequeno rouxinol
Por constância da corrida
Por estradas coloridas
Pros lados do pôr-do-sol...

No meu fantástico mundo
Corre o amargo do suor
Corre o peso, a pior
Desventura da corrida
Em direção do além...
Mas também corre o melhor,
O punhado de farinha
Na travessa da cozinha...
O silêncio das seis horas
De minha Nossa Senhora
Das Dores, da Conceição.
O barulho do trovão
Invernada que já vem
A esperança da vida
Aventura da corrida
Em direção do além...

No meu fantástico mundo
Corre o tempo devagar
Corre a vela queimar
Do lado de Padim Ciço,
Grande santo do Sertão.
A lagartixa escalar
O reboco da parede
Corre o balanço da rede
O rangido da porteira
Chegando em casa da feira
Com seus sete, nove filhos
Em cada olho um brilho
Em cada brilho, a feição
Em cada feição um viço
Romeiro de Padim Ciço,
Grande santo do sertão.

No meu fantástico mundo
Corre o berro do bezerro
O cortejo do enterro
Corre a noite de luar...
Perpetuando a vida
Corre acerto, corre erro
Corre o céu bem pontilhado
Enxada, foice, machado,
O descanso merecido
De quem já nasce crescido
E de noite é criança
No estalo da esperança
De uma sina bem cumprida
Vontade de descansar
Dormir sob o luar
Perpetuando a vida.

Rivaldo Júnior

Versos Íntimos (Augusto dos Anjos)



 Vês! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão - esta pantera -
Foi tua companheira inseparável!

Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora, entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.

Toma um fósforo. Acende teu cigarro! 
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.

Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!

segunda-feira, 21 de março de 2011

Guerreiro menino (Gonzaguinha)


Um homem também chora
Menina morena
Também deseja colo
Palavras amenas
Precisa de carinho
Precisa de ternura
Precisa de um abraço
Da própria candura

Guerreiros são pessoas
São fortes, são frágeis
Guerreiros são meninos
No fundo do peito
Precisam de um descanso
Precisam de um remanso
Precisam de um sonho
Que os tornem perfeitos
 
É triste ver este homem
Guerreiro menino
Com a barra de seu tempo
Por sobre seus ombros
Eu vejo que ele berra
Eu vejo que ele sangra
A dor que traz no peito
Pois ama e ama

Um homem se humilha
Se castram seu sonho
Seu sonho é sua vida
E a vida é trabalho
E sem o seu trabalho
Um homem não tem honra
E sem a sua honra
Se morre, se mata

Não dá pra ser feliz
Não dá pra ser feliz

domingo, 20 de março de 2011

Ai! Se sêsse... (Zé da luz)

Se um dia nós se gostasse;   
Se um dia nós se queresse;   
Se nós dois se impariásse,
  
Se juntinho nós dois vivesse!   
Se juntinho nós dois morasse   
Se juntinho nós dois drumisse;   
Se juntinho nós dois morresse!   
Se pro céu nós assubisse?   
Mas porém, se acontecesse   
qui São Pêdo não abrisse   
as portas do céu e fosse,   
te dizê quarqué toulíce?   
E se eu me arriminasse    
e tu cum insistisse,   
prá qui eu me arrezorvesse    
e a minha faca puxasse,   
e o buxo do céu furasse...   
Tarvez qui nós dois ficasse   
tarvez qui nós dois caísse   
e o céu furado arriasse   
e as virge tôdas fugisse!!! 
 

quinta-feira, 17 de março de 2011

“Se eu pudesse retornar no tempo” - O vendedor de Sonhos (Augusto Cury)


“Ah! Se eu pudesse retornar no tempo! Conquistaria menos poder e teria mais poder de conquistar. Beberia algumas doses de irresponsabilidade, me colocaria menos como aparelho de resolver problemas e me permitiria relaxar, pensar no abstrato, refletir sobre os mistérios que me cercam.”
“Se eu pudesse retornar no tempo, procuraria meus amigos da juventude. Onde estão? Quem está vivo? Eu os procuraria e reviveria as experiências singelas colhidas no jardim da simplicidade, onde não havia as ervas daninhas do status nem a sedução do poder financeiro.”
“Se eu pudesse retornar, daria mais telefonemas para a mulher da minha vida nos intervalos das reuniões. Procuraria ser um profissional mais estúpido e um amante mais intenso. Seria mais bem-humorado e menos pragmático, menos lógico e mais romântico. Escreveria poesias tolas de amor. Diria mais vezes ’eu te amo! ’. Reconheceria sem medo: ’Perdoe-me por trocá-la pelas reuniões de trabalho! Não desista de mim’.”
“Ah, se eu pudesse retornar nas asas do tempo! Beijaria mais meus filhos, brincaria muito mais, curtiria sua infância como a terra seca absorve a água. Sairia na chuva com eles, andaria descalço na terra, subiria em árvores. Teria menos medo que se ferissem e se gripassem, e mais medo de que se contaminassem com o sistema social. Seria mais livre no presente e menos escravo do futuro. Trabalharia menos para lhes dar o mundo e me esforçaria muito mais para lhes dar o meu mundo.”
E observando atentamente o esplendoroso estádio, suas colunas, teto, assento, completou, intensamente comovido:
— Se eu pudesse retornar no tempo, daria todo o meu dinheiro para ter mais um dia com eles e faria desse dia um momento eterno. Mas eles se foram; as únicas vozes que ouço são as que ficaram ocultas nos escombros da minha memória: ”Papai, você é o melhor pai do mundo, mas o mais ocupado também”.
Após declamar essa poesia, lágrimas escorriam volumosamente pela sua face, ratificando que os grandes homens também choram. E finalizou com estas palavras: 
— O passado é meu algoz, não me permite o retorno, mas o presente levanta generosamente meu semblante descaído e me faz enxergar que não posso mudar o que fui, mas posso construir o que serei. Podem me chamar de louco, psicótico, maluco, não importa. O que importa é que, como todo mortal, um dia terminarei o show da existência no pequeno palco de um túmulo, diante de uma platéia em lágrimas.

terça-feira, 15 de março de 2011

Hipócrita

Arrancai a máscara da face que me condena
O riso melancólico que me desconcentra
A lágrima fútil
O desespero anunciado
O conformismo semi-lateral das multidões mudas.

Choro em lágrimas de peixe
Grito mudo em minha cama
Minha dor de cabeça...
Meu orgulho dilatado
No nó de meus braços abertos
Preso na vontade morta
Em uma realidade 
Subumana
Suburbana
No subterrâneo do meu ser
Teimando em vir à tona
Mas contido em goles de angústia
Sim, Senhor.
Não, Senhor.

Cala-te.

Um silêncio vale por mil imagens que valem por mil palavras.
Minha cabeça balança.
Meus olhos não confirmam.
Medo?
Covardia?
Dane-se as morais
Que posso fazer eu sozinho. 
Sozinho e calado.
Rivaldo Júnior

sexta-feira, 11 de março de 2011

Avôhai (Zé Ramalho)

Um velho cruza a soleira
De botas longas, de barbas longas
De ouro o brilho do seu colar
Na laje fria onde quarava
Sua camisa e seu alforje
De caçador...
Oh! Meu velho e Invisível
Avôhai!
Oh! Meu velho e Indivisível
Avôhai!

Neblina turva e brilhante
Em meu cérebro coágulos de sol
Amanita matutina
E que transparente cortina
Ao meu redor...
E se eu disser
Que é meio sabido
Você diz que é bem pior
E pior do que planeta
Quando perde o girassol...
É o terço de brilhante
Nos dedos de minha avó
E nunca mais eu tive medo
Da porteira
Nem também da companheira
Que nunca dormia só...

Avôhai!
Avô e Pai
Avôhai!

O brejo cruza a poeira
De fato existe
Um tom mais leve
Na palidez desse pessoal
Pares de olhos tão profundos
Que amargam as pessoas
Que fitar...
Mas que devem sua vida
Sua alma na altura que mandar
São os olhos, são as asas
Cabelos de Avôhai...
Na pedra de turmalina
E no terreiro da usina
Eu me criei
Voava de madrugada
E na cratera condenada
Eu me calei
Se eu calei foi de tristeza  
Você cala por calar
E calado vai ficando
Só fala quando eu mandar...
Rebuscando a consciência
Com medo de viajar
Até o meio da cabeça do cometa
Girando na carrapeta
No jogo de improvisar
Entrecortando
Eu sigo dentro a linha reta
Eu tenho a palavra certa
Prá doutor não reclamar... 


Avôhai! Avôhai! 
Avôhai! Avôhai!

quarta-feira, 9 de março de 2011

Poema dos Olhos da Amada (Vinicius de Moraes)


Oh, minha amada                                 
                                                                                     Que olhos os teus
São cais noturnos                                                                                      
                     Cheios de adeus
São docas mansas                  
                                                        Trilhando luzes
Que brilham longe
                                                               
 Longe nos breus...                                                                                               

                                                                                          Oh, minha amada
                         Que olhos os teus                                                                 
                                   Quanto mistério
Nos olhos teus               
Quantos saveiros                                                             
                                                           Quantos navios
  Quantos naufrágios                                                                                      
Nos olhos teus...     

Oh, minha amada                                               
                                                                                            Que olhos os teus            
Se Deus houvera
                                                       Fizera-os Deus
Pois não os fizera                                                      
                                                                                              Quem não soubera
Que há muitas eras                                                                        
                                                                    Nos olhos teus.                                         
       
  Ah, minha amada
                                                                                           De olhos ateus
Cria a esperança                                                                                              
                          Nos olhos meus
De verem um dia                                  
                                                                                 O olhar mendigo
Da poesia                                                                      
Nos olhos teus.

terça-feira, 8 de março de 2011

Aviso da Lua que menstrua (Elisa Lucinda)

Moço, cuidado com ela!  
Há que se ter cautela com esta gente que menstrua...
Imagine uma cachoeira às avessas:
cada ato que faz, o corpo confessa. 


Cuidado, moço
às vezes parece erva, parece hera
cuidado com essa gente que gera
essa gente que se metamorfoseia
metade legível, metade sereia.

Barriga cresce, explode humanidades
e ainda volta pro lugar que é o mesmo lugar
mas é outro lugar, aí é que está:
cada palavra dita, antes de dizer, homem, reflita.. 

Sua boca maldita não sabe 
que cada palavra é ingrediente
que vai cair no mesmo planeta panela. 

Cuidado com cada letra que manda pra ela!
Tá acostumada a viver por dentro,
transforma fato em elemento
a tudo refoga, ferve, frita
ainda sangra tudo no próximo mês. 

Cuidado moço, quando cê pensa que escapou
é que chegou a sua vez!
Porque sou muito sua amiga
é que tô falando na "vera"
conheço cada uma, além de ser uma delas.

Você que saiu da fresta dela
delicada força quando voltar a ela.
Não vá sem ser convidado
ou sem os devidos cortejos..
Às vezes pela ponte de um beijo
já se alcança a "cidade secreta"
a Atlântida perdida.
Outras vezes várias metidas e mais se afasta dela.

Cuidado, moço, por você ter uma cobra entre as pernas
cai na condição de ser displicente
diante da própria serpente
Ela é uma cobra de avental

Não despreze a meditação doméstica
É da poeira do cotidiano
que a mulher extrai filosofando
cozinhando, costurando e você chega com a mão no bolso
julgando a arte do almoço: Eca!...
Você que não sabe onde está sua cueca?
 

Ah, meu cão desejado
tão preocupado em rosnar, ladrar e latir
então esquece de morder devagar
esquece de saber curtir, dividir.

E aí quando quer agredir
chama de vaca e galinha.
São duas dignas vizinhas do mundo daqui!
O que você tem pra falar de vaca?
O que você tem eu vou dizer e não se queixe:
VACA é sua mãe. 

De leite.
 

Vaca e galinha...
ora, não ofende. Enaltece, elogia:
comparando rainha com rainha
óvulo, ovo e leite
pensando que está agredindo
que tá falando palavrão imundo.
Tá, não, homem.

Tá citando o princípio do mundo!





sábado, 5 de março de 2011

Restos do Carnaval (Clarice Lispector)

Não, não deste último carnaval. Mas não sei por que este me transportou para a minha
infância e para as quartas-feiras de cinzas nas ruas mortas onde esvoaçavam despojos de serpentina e confete. Uma ou outra beata com um véu cobrindo a cabeça ia à igreja, atravessando a rua tão extremamente vazia que se segue ao carnaval. Até que viesse o outro ano. E quando a festa já ia se aproximando, como explicar a agitação que me tomava? Como se enfim o mundo se abrisse de botão que era em grande rosa escarlate. Como se as ruas e praças do Recife enfim explicassem para que tinham sido feitas. Como se vozes humanas enfim cantassem a capacidade de prazer que era secreta em mim. Carnaval era meu, meu. No entanto, na realidade, eu dele pouco participava. Nunca tinha ido a um baile infantil, nunca me haviam fantasiado. Em compensação deixavam-me ficar até umas 11 horas da noite à porta do pé de escada do sobrado onde morávamos, olhando ávida os outros se divertirem. Duas coisas preciosas eu ganhava então e economizava-as com avareza para durarem os três dias: um lança-perfume e um saco de confete. Ah, está se tornando difícil escrever. Porque sinto como ficarei de coração escuro ao constatar que, mesmo me agregando tão pouco à alegria, eu era de tal modo sedenta que um quase nada já me tornava uma menina feliz. 
E as máscaras? Eu tinha medo, mas era um medo vital e necessário porque vinha de encontro à minha mais profunda suspeita de que o rosto humano também fosse uma espécie de máscara. À porta do meu pé de escada, se um mascarado falava comigo, eu de súbito entrava no contato indispensável com o meu mundo interior, que não era feito só de duendes e príncipes encantados, mas de pessoas com o seu mistério. Até meu susto com os mascarados, pois, era essencial para mim.
Não me fantasiavam: no meio das preocupações com minha mãe doente, ninguém em casa tinha cabeça para carnaval de criança. Mas eu pedia a uma de minhas irmãs para enrolar aqueles meus cabelos lisos que me causavam tanto desgosto e tinha então a vaidade de possuir cabelos frisados pelo menos durante três dias por ano. Nesses três dias, ainda, minha irmã acedia ao meu sonho intenso de ser uma moça - eu mal podia esperar pela saída de uma infância vulnerável - e pintava minha boca de batom bem forte, passando também ruge nas minhas faces. Então eu me sentia bonita e feminina, eu escapava da meninice.
Mas houve um carnaval diferente dos outros. Tão milagroso que eu não conseguia acreditar que tanto me fosse dado, eu, que já aprendera a pedir pouco. É que a mãe de uma amiga minha resolvera fantasiar a filha e o nome da fantasia era no figurino Rosa. Para isso comprara folhas e folhas de papel crepom cor-de-rosa, com os quais, suponho, pretendia imitar as pétalas de uma flor. Boquiaberta, eu assistia pouco a pouco à fantasia tomando forma e se criando. Embora de pétalas o papel crepom nem de longe lembrasse, eu pensava seriamente que era uma das fantasias mais belas que jamais vira.
Foi quando aconteceu, por simples acaso, o inesperado: sobrou papel crepom, e muito. E a mãe de minha amiga - talvez atendendo a meu mudo apelo, ao meu mudo desespero de inveja, ou talvez por pura bondade, já que sobrara papel - resolveu fazer para mim também uma fantasia de rosa com o que restara de material. Naquele carnaval, pois, pela primeira vez na vida eu teria o que sempre quisera: ia ser outra que não eu mesma.
Até os preparativos já me deixavam tonta de felicidade. Nunca me sentira tão ocupada: minuciosamente, minha amiga e eu calculávamos tudo, embaixo da fantasia usaríamos combinação, pois se chovesse e a fantasia se derretesse pelo menos estaríamos de algum modo vestidas - à idéia de uma chuva que de repente nos deixasse, nos nossos pudores femininos de oito anos, de combinação na rua, morríamos previamente de vergonha - mas ah! Deus nos ajudaria! não choveria! Quando ao fato de minha fantasia só existir por causa das sobras de outra, engoli com alguma dor meu orgulho que sempre fora feroz, e aceitei humilde o que o destino me dava de esmola.
Mas por que exatamente aquele carnaval, o único de fantasia, teve que ser tão melancólico? De manhã cedo no domingo eu já estava de cabelos enrolados para que até de tarde o frisado pegasse bem. Mas os minutos não passavam, de tanta ansiedade. Enfim, enfim! Chegaram três horas da tarde: com cuidado para não rasgar o papel, eu me vesti de rosa.
Muitas coisas que me aconteceram tão piores que estas, eu já perdoei. No entanto essa não posso sequer entender agora: o jogo de dados de um destino é irracional? É impiedoso. Quando eu estava vestida de papel crepom todo armado, ainda com os cabelos enrolados e ainda sem batom e ruge - minha mãe de súbito piorou muito de saúde, um alvoroço repentino se criou em casa e mandaram-me comprar depressa um remédio na farmácia. Fui correndo vestida de rosa - mas o rosto ainda nu não tinha a máscara de moça que cobriria minha tão exposta vida infantil - fui correndo, correndo, perplexa, atônita, entre serpentinas, confetes e gritos de carnaval. A alegria dos outros me espantava.
Quando horas depois a atmosfera em casa acalmou-se, minha irmã me penteou e pintou-me. Mas alguma coisa tinha morrido em mim. E, como nas histórias que eu havia lido, sobre fadas que encantavam e desencantavam pessoas, eu fora desencantada; não era mais uma rosa, era de novo uma simples menina. Desci até a rua e ali de pé eu não era uma flor, era um palhaço pensativo de lábios encarnados. Na minha fome de sentir êxtase, às vezes começava a ficar alegre mas com remorso lembrava-me do estado grave de minha mãe e de novo eu morria.
Só horas depois é que veio a salvação. E se depressa agarrei-me a ela é porque tanto precisava me salvar. Um menino de uns 12 anos, o que para mim significava um rapaz, esse menino muito bonito parou diante de mim e, numa mistura de carinho, grossura, brincadeira e sensualidade, cobriu meus cabelos já lisos de confete: por um instante ficamos nos defrontando, sorrindo, sem falar. E eu então, mulherzinha de 8 anos, considerei pelo resto da noite que enfim alguém me havia reconhecido: eu era, sim, uma rosa.

terça-feira, 1 de março de 2011

Teoria dos erros



Corremos pelo mundo
Buscamos a verdade
A verdade escrita
A verdade tingida
 A verdade sobposta nos tolos.
No velho jacarandá
No cheiro ácido do sabão
Contaminando as mãos das lavandeiras
E na lagoa de água escura
Esconderijo dos monstros.

Parados.
A estátua de mármore
 O arame farpado
O rangido da cadeira de balanço
A risada da criança
Perdida
Nas luzes do semáforo
No neon das fachadas
No brilho escuro das cinzas do cigarro
Na flor murcha do altar.

Procura-se
Em todas as quadras
Em todos os becos
Em todos os rostos
Em todas as sobrancelhas
Em todos os segundos adiantados no relógio
A verdade
A verdade viva
A verdadeira verdade viva
Maratonista das ruas sangrentas
Cavadora do deserto de pérolas
Do milagre de reinvenção
Do pedaço de pão com manteiga
Do pó que sobrou na embalagem
Única via
Caminho sem fim
Ciclo virtuoso
Sem pé, nem cabeça, nem perna curta
Sem medo dos monstros
Da monstruosa humanidade.

A verdade viva
A vida verdadeira
A verossimilhança volátil, vivaz
A vida verídica, alada

Onde está?
No nascimento do erro
Na morte da confusão
Na desintoxicação hipócrita
Da benção do pai 
Do choro da mãe. 
Rivaldo Júnior